“Traições”: o âmago de Harold Pinter
Harold Pinter nunca foi um dramaturgo de meias tintas. Seus diálogos secos, os silêncios eloqüentes, o desconforto flutuando entre personagens como nuvens carregadas prestes a desabar — tudo em sua obra parece carregar uma tensão invisível e brutal. Mas em Traições (Betrayal, 1978), Pinter opera de maneira distinta, quase cirúrgica. A peça é menos uma bomba emocional do que uma dissecação em tempo reverso daquilo que, em geral, se entende por amor, casamento e amizade.
Baseada em sua própria vida — um caso extraconjugal com a apresentadora da BBC Joan Bakewell —, Traições é uma espécie de Pinter voltado para dentro. Ao contrário de peças como O Porteiro ou Festa de Aniversário, onde a violência é latente ou implícita, aqui o jogo é mais íntimo, mas não menos brutal. Em vez de ameaças veladas, há silêncios incômodos entre amantes; em vez de psicopatas insinuantes, há maridos traídos que sabem mais do que dizem. E, claro, como bom inglês, ninguém joga a xícara de chá no chão.
“Ele não quer chocar. Quer mostrar que o horror cotidiano não precisa de monstros, apenas de pessoas que se amam um pouco menos do que deveriam.”
O enredo gira em torno de um triângulo amoroso: Emma e Jerry têm um caso de sete anos às escondidas de Robert, marido dela e melhor amigo dele. Mas Pinter, em um gesto formal engenhoso — e aqui está a traição do título com a linearidade narrativa —, decide contar a história de trás para frente. Começamos no fim do caso e vamos recuando até seu início, até o momento em que a primeira faísca foi acesa.
É como se dissesse ao espectador: esqueça o suspense tradicional, o que interessa é o mecanismo, não a explosão.
Uma anatomia da mentira com polidez inglesa
É claro que a reversão temporal tem um impacto poderoso. As camadas de cinismo, frustração e autoengano, que geralmente seriam reveladas ao longo da narrativa, já estão escancaradas de início. Quando voltamos ao começo, percebemos que aquele momento de “início” já está contaminado pelo fim. Não há pureza na paixão. Não há ingenuidade no flerte. A traição, aqui, não é apenas moral — é também estrutural. Pinter trai as expectativas do público, trai a cronologia, trai a ideia de que há vilões ou vítimas claras. Todos traem. E ninguém escapa ileso.
A escolha de contar a história de trás para frente torna-se quase um comentário metafísico. É como se Pinter sugerisse que todas as relações humanas são fadadas à decomposição — e que essa deterioração está inscrita desde o primeiro olhar, desde o primeiro toque. A sensação é de fatalismo. Como se o amor fosse um romance que se escreve ao contrário: começando pela desilusão, atravessando a culpa e terminando na chama inicial que, já sabemos, não vai durar.
Do ponto de vista formal, Traições é uma peça extremamente econômica. Três personagens, nove cenas, nenhum excesso. Mas cada linha carrega múltiplos sentidos. A famosa “pausa pinteriana” — esses silêncios desconcertantes — aparece aqui como ferramenta de tortura emocional. O que não se diz pesa mais do que o que se verbaliza. E nesse aspecto, a peça beira o brilhantismo: é um estudo do não-dito, da hesitação, do constrangimento social tão tipicamente britânico diante da própria miséria sentimental.
Revisitar Traições é um exercício tão atual quanto doloroso. Numa era onde os relacionamentos são líquidos (como diria Bauman) e as narrativas são moldadas por stories de 15 segundos, Pinter oferece uma dramaturgia do atrito lento, da erosão do desejo, da verdade como algo sempre deslocado. Afinal, quem diz a verdade em Traições? Emma? Jerry? Robert? O público? A memória?
Talvez o maior golpe de Pinter seja ter feito uma peça sobre adultério que nunca apela ao moralismo barato. Não há castigo, não há redenção. Só há constatações: de que amar é mentir, de que mentir é necessário, de que a verdade é uma questão de conveniência. Não por acaso, os momentos mais desconfortáveis são aqueles em que a verdade ameaça emergir — e é imediatamente abafada por uma taça de vinho, um comentário irônico ou uma pausa. Sempre a pausa.
A crítica mais conservadora, especialmente à época da estreia, viu em Traições um Pinter mais “acessível”, mais “emocional”. Mas isso é uma leitura apressada. A peça pode até parecer mais gentil, mas a lâmina é afiada. A diferença é que, em vez de empunhá-la com fúria, Pinter a desliza devagar sob a pele dos personagens — e do espectador. Ele não quer chocar. Quer mostrar que o horror cotidiano não precisa de monstros, apenas de pessoas que se amam um pouco menos do que deveriam.
Hoje, Traições permanece como uma das grandes obras do teatro do século XX — e não apenas por sua forma engenhosa ou por sua base autobiográfica, mas por sua capacidade de dizer, sem gritar, que todo amor tem prazo de validade. A traição, no fim, não é uma exceção. É uma forma de continuidade. Pinter, com sua parcimônia brutal e sua inteligência sem alarde, nos lembra que o verdadeiro teatro não é o das grandes reviravoltas, mas o das pequenas rachaduras que fazem tudo desmoronar com requinte.

Se o amor é um campo de batalha, Harold Pinter é o general que já conhece o fim da guerra antes do primeiro tiro. E nos faz assistir ao conflito — de trás pra frente — só para provar que nunca houve chance de vitória.
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