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Clube da Esquina: um novo significado

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A morte recente de Lô Borges, no último 02, por intoxicação medicamentosa, reacende algo que, há décadas, a cultura brasileira insiste em fazer: reinterpretar seus próprios mitos. O Clube da Esquina, lançado em 1972, sempre foi uma obra que rasgava fronteiras – geográficas, musicais, emocionais. E agora, sem um dos seus pilares mais radicais e discretos, o disco ganha um silêncio novo, mais profundo. Não é apenas a ausência de um compositor genial e tímido; é a percepção de que aquele mundo sonoro que parecia eterno também é frágil, mortal, vulnerável ao tempo e à biologia. O mito se humaniza. E isso, curiosamente, o engrandece.

Desde os anos 1970, o álbum foi descrito de mil formas: uma síntese da mineiridade lírica, um sopro cosmopolita no sertanejo interiorano, uma resposta brasileira ao rock progressivo inglês, um jazz manso com brisa de montanha. Mas talvez nada disso seja suficiente agora. Com Lô Borges ausente, suas harmonias ganham uma dualidade quase fantasmática. Como se ele estivesse nos cantando de longe, atrás de uma porta entreaberta. O fato de sua morte não ter sido heroica, nem trágica no sentido romântico – mas sim ordinária, doméstica, clínica – adiciona uma camada até cruel: o gênio que tantos imaginaram transcendente era, no fundo, humano como qualquer um que tenta dormir, calar a mente, engolir o mundo com comprimidos.

“Não deixa de ser irônico que o Clube da Esquina, obra de juventude, agora seja escutado como um testamento. A delicadeza de Lô Borges – esse mineiro que parecia feito de vento, café e timidez – transforma-se em legado. Não apenas para músicos, mas para qualquer pessoa que já tentou existir com alguma dignidade.”

É impossível voltar a ouvir “Um Girassol da Cor do Seu Cabelo” ou “O Trem Azul” sem sentir algo a mais. Esses arranjos, antes luminosos, ganham uma sombra. Não uma sombra triste, mas uma sombra de presença: um aviso de que o tempo passa, os corpos cansam, e aquilo que achávamos que estava gravado no mármore era apenas som vibrando no ar. O Clube da Esquina nunca foi um disco de festa. Ele sempre foi um retrato sentimental do Brasil profundo, o Brasil silencioso, o Brasil que observa antes de julgar. Agora ele se torna também uma elegia.

E, ao contrário do mito dos anos 1990, não estamos falando de nostalgia. Nostalgia é desejar voltar ao passado. Aqui, o sentimento é outro: é reconhecer que aquilo que acreditávamos eterno tem data, cheiro, textura. É aceitar que a memória é um trabalho vivo e que a arte, como qualquer ser humano, também morre e renasce cada vez que alguém a ouve.

Um monumento afetivo que muda de tom

O Clube da Esquina sempre foi uma espécie de catedral emocional para brasileiros sensíveis, intelectuais de classe média, românticos tardios e solitários em trânsito. Era o disco do pôr do sol na janela, da saudade de quem nem se conheceu direito, do amor que nunca deu certo mas também nunca doeu o suficiente para virar trauma. Ele era, por excelência, o álbum do quase. Agora, ele se torna o álbum do foi.

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Isso não diminui sua grandeza. Ao contrário, o torna mais vivo. Perfeito não é o que não tem falha; perfeito é o que contém uma ferida que sabemos tocar. Se antes o disco era uma espécie de refúgio espiritual, agora ele se torna um espelho. A pergunta muda: já não buscamos consolo nele, buscamos reconhecimento. “Também sou frágil”, diz ele. “Também machuca ser vivo.”

Não deixa de ser irônico que o Clube da Esquina, obra de juventude, agora seja escutado como um testamento. A delicadeza de Lô Borges – esse mineiro que parecia feito de vento, café e timidez – transforma-se em legado. Não apenas para músicos, mas para qualquer pessoa que já tentou existir com alguma dignidade.

Talvez o que muda, enfim, seja nosso próprio lugar na escuta. A obra continua igual – as harmonias continuam cristalinas, os violões continuam molhados de montanha, o piano continua caminhando como quem pisa na terra vermelha de Minas depois da chuva. Mas nós mudamos. E agora ouvimos com a consciência de que a beleza é sempre precária. Que nada é garantido. Que o tempo é o maestro final.

O Clube da Esquina sempre foi uma espécie de catedral emocional para ouvintes (Foto: Wiki)
O Clube da Esquina sempre foi uma espécie de catedral emocional para ouvintes (Foto: Wiki)

No fundo, a morte de Lô Borges não altera o Clube da Esquina. Ela altera a nós. E, por isso mesmo, o álbum ganha um novo significado: deixa de ser apenas um marco histórico e passa a ser uma sentença existencial. O amor é breve. A música é maior. E nós somos apenas os que passam por ela – olhando para o céu, como quem procura um trem que já partiu, mas ainda deixa o som nos trilhos.


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